quarta-feira, 23 de julho de 2008

Do púlpito ao “Trampolim da vitória”: pioneirismo Batista Regular em solo potiguar no tempo da II Guerra Mundial.










RESUMO:
Baseado em relatos da memória de Ricardo Mateus (filho do missionário americano, Carl Mattews, 1902-1966, fundador, em nosso estado, do grupo protestante Batista Regular) e pesquisa bibliográfica, o presente artigo, busca dimensionar o trabalho do missionário Carl Mathews no estabelecimento da primeira igreja Batista Regular em solo potiguar e no serviço militar americano na base aérea de Parnamirim/RN, no tempo da II Guerra Mundial.

Palavras-chave: Memória, História de vida, Batistas Regulares, II Guerra Mundial.

As ações humanas em diversos tempo e espaço, impulsionadas pelas mais variadas causas (econômica, religiosa, natural, mítica, etc), de maneira individual e/ou coletiva, configuram o que podemos chamar de história. O conhecimento histórico, também se dá por múltiplas formas, a partir dos estudos às fontes históricas, tais como, registro escrito (documental, biográfico, anotações, etc), áudio, audiovisual, imagem (pintura, fotográfica, charge, etc), objetos da época (roupas, ferramentas, etc), dentre outros.
Novas fontes de pesquisa têm despertado a atenção dos historiadores, especialmente as audiovisuais. Aqui, valemo-nos desse recurso, através do registro da história de vida de Ricardo Mateus, feito pelo projeto Voz da Memória, para construirmos um texto que possa apresentar uma versão de alguns acontecimentos sociais, do tempo e espaço, em estudo.
Através do depoimento[1] do missionário protestante Ricardo Mateus, apresentamos aspectos do pioneiro trabalho missionário Batista Regular em solo potiguar na primeira metade do século XX, identificando também, por meio da memória do depoente, como se deu a participação de seu pai (Carl Mattews) no serviço militar americano da base aérea de Parnamirim/RN, no tempo da II Guerra Mundial.

Os Batistas Regulares no RN:

A presença da religião protestante no nosso estado começou no final do século XIX, na cidade de Mossoró, com a fundação de uma igreja presbiteriana. As igrejas Batistas se estabeleceram em 1896, na capital, seguidas por trabalhos fundados em cidades como Mossoró, Nova Cruz e Parnamirim. Os Batistas Regulares chegaram nos anos de 1939.
Os Batistas Regulares defendem a crença de que suas raízes históricas estão fincadas nas práticas bíblicas do Novo Testamento, porém, pelo que tudo indica, ele deriva do ramo batista que apareceu no cenário religioso do cristianismo, na primeira metade do século XVII, a partir dos movimentos separatistas da Inglaterra, em contato com o movimento da Reforma Radical em curso na Europa Continental. (SILVA, 2006, p.17).

Na memória de Ricardo Mateus, filho do casal americano Carl e Adelaide Mattews, fundadores do grupo Batista Regular no Rio Grande do Norte, estão lembranças da chegada da família ao Nordeste brasileiro nos anos de 1932, vivendo nas cidades de Patos e Esperança, onde encontraram dificuldades para se adaptarem ao calor do sertão paraibano, do estabelecimento em 1938, em São José de Mipibú/RN e alguns fatos vivenciados pela família nas primeiras décadas em nosso estado.
Motivados por divergências doutrinárias entre os membros da associação religiosa que financiava a presença do casal no Brasil, a família Mattews, é enviada ao estado do Ceará, fixando-se na cidade de Maranguape, onde nasceu Ricardo Mateus (1935).
Após um período de férias nos EUA, os missionários Mattews voltam ao Brasil em 1938, desta vez para o Rio Grande do Norte. A cidade escolhida, São José de Mipibú, tornou-se a terra da primeira igreja Batista Regular potiguar, estabelecida em 30 de setembro de 1939. Em sua memória, Ricardo Mateus relembra:

Na época era a 4ª cidade do estado... Quando chegamos ninguém queria alugar uma casa. Começamos numa casa, onde hoje é a praça principal, não existia luz elétrica. Mamãe tocava o órgão, papai na frente, meu irmão, eu (três anos) e minha irmã.

Historicamente, os grupos católicos e protestantes entraram em divergências e conflitos pela fixação de igrejas e obtenção de adeptos de seus ensinamentos no território nacional e internacional. Logo no início do trabalho no Rio Grande do Norte, os missionários Batistas Regulares encontraram resistência católica, tanto da igreja como dos moradores, em São José de Mipibú. Segundo Ricardo Mateus, durante os cultos da igreja Batista, “o povo ia pra ficar no escuro pra que não fossem reconhecidos, já que o padre havia anunciado que, aqueles que freqüentassem os cultos, estariam cometendo um grave pecado”.
Um dos fatos que representam essas divergências religiosas é narrado quando Ricardo Mateus lembra do dia em que seu pai, o missionário Carl Mattews foi preso em São José de Mipibú/RN, por ter realizado um culto na primeira praça construída na cidade, uma semana depois do padre ter realizado, no mesmo local, uma missa.
No sábado anterior, entre os mipibuenses reunidos na feira da cidade, já havia vários comentários da expectativa sobre a realização do culto do dia seguinte.

Na hora que ele (missionário Carl Matheus) estava fazendo o culto, aí chegou o delegado, Pedro Guarani, com dois soldados, mandados pelo padre... Ele foi levado preso para a cadeia que ficava na frente do cemitério. (Depoimento de Ricardo Mateus)

Numa tarde de domingo, o missionário Carl Mattews, foi realizar um culto na praça da cidade; logo que começou, um soldado de polícia, entregou ao missionário, uma ordem de prisão expedida pelo bispo de Natal. Ele foi conduzido à cadeia local acompanhado pela igreja[2].

Outra forma pela qual os Batistas Regulares foram ameaçados pelos mipibuenses foi o uso do apedrejamento para inibir a expansão do trabalho evangélico. Sobre isso, são citados dois momentos: em 1961, durante a pregação de alguns seminaristas no dia de finados, no cemitério local e três anos depois, quando o próprio Ricardo Mateus dirigia o culto na igreja, onde pedras foram atiradas em sua direção e sobre o telhado do prédio.
No entanto, Ricardo Mateus enfatiza que justamente, as ações contrárias aos Batistas Regulares, impulsionaram o crescimento do grupo na cidade. Ao destacar que “isso aí (as perseguições) foi onde o evangelho estorou em São José, porque as pessoas acharam um absurdo... Teve mais gente na cadeia... E papai, das celas da cadeia, pregou o evangelho”. Em sua carta de memórias da época, Almanira Gandour, ficou surpresa ao perceber que Carl Mattews “através das grades, pregou o evangelho para muitas pessoas. Sem se intimidar (após a libertação), continuou o trabalho de evangelização em São José e nas cidades vizinhas, com sua esposa, senhora Adelaide Mattews”.

Carl Mateus e a II Guerra Mundial:

A história de vida do missionário americano Carl Mathews começa a integrar a história da II Guerra Mundial, a partir da efetiva entrada dos EUA no conflito, em 1941, e a pressão estadunidense ao governo brasileiro, para que este rompesse relações diplomáticas e comerciais com os países do Eixo, juntando-se ao grupo dos Aliados.
Desde o fim da I Guerra Mundial, Hitler planejava a reação alemã contrária ao Tratado de Versalhes, imposto pela França, Inglaterra e Estados Unidos, em 1919, após a derrota da Alemanha. Com a invasão alemã à Polônia, em setembro de 1939, deu-se a eclosão da II Guerra Mundial.
Inicialmente, a participação brasileira limitou-se ao fornecimento de matérias-primas, como o minério de ferro, aos Aliados e a concessão de bases militares em Belém, Recife e Natal. Em troca da concessão brasileira às bases militares, o governo americano emprestou 20 milhões de dólares para a construção da Companhia Siderúrgica Nacional.

A concessão das bases do Nordeste foi por ele (Getúlio Vargas) percebida como uma imposição: ou o Brasil cedia parte de seu território ou seria considerado inimigo dos Aliados. O país era, segundo Vargas, jogado em uma ‘aventura’ que não escolhera e que não controlaria. (D´ARAUJO, 2000).
Em termos estratégicos, o campo aéreo de Parnamirim/RN, foi a base de um triângulo que apontava para o “teatro de operações” (o norte da África e o sul da Europa), onde a sorte dos aliados contra os nazistas estava sendo lançada. No livro História de Parnamirim, Carlos Peixoto, descreve que, em julho de 1941, começaram, então, a desembarcar em Natal as equipes técnicas da Airport Division (ADP). Sendo, de fato, militares americanos que chegavam para a construção de Parnamirim Field, o maior campo de aviação e base de operações militares que os Estados Unidos viria a ter, durante a II Guerra, fora do seu território. O Campo de Parnamirim era chamado Trampolim da Vitória, pois era dali que os americanos partiam em direção às áreas inimigas, e culminou na vitória dos aliados na II Guerra Mundial.
A vida de Natal se transforma com a movimentação de grande número de estrangeiros, americanos em sua maioria. O comércio aumentou consideravelmente. Natal vivenciou novos costumes e presenciou uma vida diferente. (SUASSUNA, 1982, p.26).

A configuração do espaço urbano da cidade potiguar, pela presença americana no contexto da II Guerra Mundial, deixou marcas que até hoje provocam nostalgia e sentimento de insatisfação, pelo descaso social aos vestígios históricos desse tempo, como a conhecida Parnamirim Road, como registrou um jornal do estado:

Os cerca de 500m que ainda restam da primeira pista de asfalto construída em Natal, datada de 1942, se vêm ameaçados diante da obra de duplicação da BR-101. O trecho, por muitos ignorado, é a memória viva dos 17km da ‘‘velha pista’’... Segundo historiadores, foi por onde passaram oficiais, soldados, marinheiros, aviadores e civis dos Estados Unidos, ligando-os do Centro à Base Aérea...
(Diário de Natal, 12/01/2006).

Uma obra de asfalto, pioneira na capital potiguar, pela qual, surgiram na década de 1960 os chamados conjuntos residenciais, os novos bairros que deram origem à zona sul natalense e ao lado, a implantação de 20km de tubulação que chegavam a transportar, diariamente, 100 mil litros de combustível, usados nos aviões americanos que passavam pelo Trampolim da Vitória. (MELO, 1998, p.50).
Dentre os americanos que chegaram ao Rio Grande do Norte para as ações militares na base aérea, Carl Matews, já em território potiguar, é convocado pelo serviço militar americano, que vê no missionário um elemento estratégico para a comunicação entre os militares e os potiguares, já que, por experiências no evangelismo em território brasileiro, Carl dominava tanto o idioma inglês quanto o português.




No entanto, o missionário, relutou à convocação do serviço militar americano.

Meu pai recusou, apresentando-se como missionário, mas eles disseram: Ou você vai como civil, ganhando mais, ou vai ser colocado nas forças armadas e sendo pago como um soldado ‘qualquer’... Então ele foi, e durante aquele tempo colocou três pessoas (Vitorino, Gumercino e uma mulher) eles faziam o trabalho na igreja e pontos de pregação... (Ricardo Mateus)

A multiplicidade de atividades realizadas pelo missionário para o serviço militar americano é identificada nas palavras em que Ricardo Mateus afirma:

Entre 1940-1941, tiraram meu pai do trabalho missionário. Ele tinha que ser um intermediário... Falava inglês e português, ele estabeleceu os escritórios na base...A função dele era de empregar pessoas, fazer pagamentos e ser intérprete entre americanos e brasileiros, ele também serviu como capelão, por quase um ano e ajudava noutros aspectos.

A partir do início da construção, Carl Mathews passou a dirigir o setor de pessoal civil da base americana, sendo o responsável pela seleção e contratação dos trabalhadores, momento no qual os moradores de São José de Mipibú/RN eram avaliados e no caso de aprovação, de imediato, iniciavam as atividades exigidas. (FREIRE, 2000).
Entre 1941 e 1946, trabalhou no departamento de pessoal do Airport Development Program (Programa de Desenvolvimento Aéreo), atividade pela qual tornou-se bastante conhecido entre os brasileiros.
Um trecho do depoimento de sua esposa, Adelaide Mathews corrobora o pensamento de Ricardo Mateus de que a presença do pai no serviço militar da base aérea em Parnamirim/RN colaborou para a expansão do grupo Batista Regular no Rio Grande do Norte:

Carl trouxe muitos visitantes à nossa casa e ao trabalho (igreja), e mesmo todo o coral da base algumas vezes. Mais tarde, um daqueles visitantes voltou como missionário. (LIMA, 1997, p.68).

Considerações Finais:

Em mais de meio século presentes no Rio Grande do Norte, atualmente, os Batistas Regulares estabeleceram igrejas em 40 dos 167 municípios do estado, além de instituições de ensino teológico e assistência social, em grande parte, conseqüência dos trabalhos da família Mattews. Ricardo Mateus, descendente da família fundadora do grupo em nosso estado, continua morando no Rio Grande do Norte, onde, aos 73 anos de vida, concilia a função de professor e diretor do SIBB (Seminário e Instituto Batista Bereiano), ao trabalho de pastor evangélico.
O “Trampolim” (grande centro aéreo-militar instalado em Parnamirim/RN) que exerceu um papel significativo dentre as ações que culminaram com a “vitória” dos Aliados na II Guerra Mundial, hoje, integra o espaço do aeroporto internacional Augusto Severo.
A partir da narrativa de vida de Ricardo Mateus, obtemos uma versão dos acontecimentos sociais aqui analisados. Nesse sentido, as narrativas de vida constituem uma maneira de conhecer a versão não oficial dos acontecimentos sociais e permitem a compreensão dos fatos históricos e sociais filtrados pela ótica dos sujeitos, a partir da elaboração presente dos fatos passados (MAGALHÃES, 2007).


BIBLIOGRAFIA:

- Projeto Voz da Memória (entrevista ao missionário Ricardo Mateus, em 14/01/2008).
- D´ARAUJO, Maria Celina Soares. O Estado Novo. RJ: Jorge Zahar, 2000. (Col. Descobrindo o Brasil).
- SILVA, Francisco Jean Carlos da. Batistas Regulares- uma abordagem histórico sociológica. Natal: EDUFRN, 2006.
- SUASSUNA, Luiz Eduardo Brandão. Anotações sobre a história do RN. RN: Ed. Clima, 1982.
- MELO, Protásio Pinheiro de. Contribuição Norte-americana à Vida Natalense. RN:1998.
- http://www.diáriodenatal.com.br/ (Duplicação da BR-101 ameaça pista histórica), 12/01/2006.
- PEIXOTO, Carlos. História de Parnamirim. RN: Z Comunicação, 2003.
- MAGALHÃES, Valéria B. “Imigração: subjetividade e memória coletiva”. In Oralidades – revista de história oral. (jan/jun. 2007- USP), nº1.
[1] Entrevista registrada em audiovisual pelo projeto Voz da Memória em 14/01/2008 - Acampamento Elim, lagoa de Bom Fim, Nísia Floresta/RN.
[2] Depoimento, em carta, de Almanira Gandour, uma das primeiras integrantes da igreja Batista Regular em São José de Mipibú/RN.

Um comentário:

kaio donloads disse...

boa hitoria sobre a segunda guerra mundial